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Artigo publicado em revista da Fiocruz analisa questões de raça e gênero nos primeiros atos de vacinação da COVID-19
Diante da pandemia do coronavírus, decretada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em março de 2020, o desenvolvimento de vacinas em tempo recorde foi uma importante conquista da ciência, mas também serviu como uma oportunidade para que políticos e representantes aproveitassem o momento com interesses próprios. De todas as unidades federativas, 26 tiveram uma mulher como protagonista do primeiro ato de vacinação. O uso da imagem de mulheres, embora pareça resultado de um empoderamento e valorização de seu papel na sociedade, revela outras nuances quando analisado sob a perspectiva da semiótica, como fez o jornalista do Campus Juiz de Fora e pesquisador Pedro Farnese.
Ele conta que as mesmas características de representatividade foram notadas empiricamente em todas as campanhas de vacinação nos estados brasileiros, o que motivou o estudo e o desenvolvimento de uma metodologia para mensurar e analisar as modulações simbólicas que surgiam dessas ações. Com orientação dos professores e pesquisadores Carla Montuori Fernandes e Paolo Demuru, o artigo foi desenvolvido em parceria com a pesquisadora Janete Monteiro Garcia como produto de atividades do doutorado em Comunicação e Culturas Midiáticas da Universidade Paulista (Unip).
O trabalho foi publicado na Revista Eletrônica de Comunicação, Informação e Inovação em Saúde, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). “Para nós, foi uma alegria muito grande publicar nosso estudo junto a uma instituição de reconhecimento nacional e internacional, que une ciência, tecnologia (na fabricação de produtos biológicos, como vacinas e fármacos), educação, saúde e projetos nacionais”, coloca Pedro.
Para entender as estratégias por trás das escolhas feitas com relação à midiatização da vacina, assim como seus efeitos de sentido, foi feito um levantamento com as coberturas jornalísticas realizadas por cada um dos sites estaduais do portal G1, pertencente ao grupo Globo de comunicação. O conjunto reúne um total de 27 reportagens, tomadas entre os dias 17 e 21 de janeiro, e que foram submetidas à metodologia da análise do discurso. As imagens vinculadas aos textos tiveram destaque na análise por narrar fatos e provocar sentidos, relacionados, principalmente, às questões de raça e gênero.
Em 26 das 27 unidades federativas, as primeiras pessoas vacinadas foram mulheres. Os dados revelam maior abrangência de imagens de mulheres pretas e pardas, que unidas somam 77% das primeiras vacinadas. Das demais, 11,5% eram brancas e 11,5% indígenas. Com relação à ocupação, 80,8% eram profissionais da saúde, aspecto justificado pela prioridade da categoria nos calendários de vacinação. Através da análise das reportagens, foi verificada uma atribuição de valor de fragilidade à mulher. Os personagens políticos aproveitam-se dessa narrativa para construir uma imagem de Estado paterno e provedor, que acolhe a todos e, em especial, aqueles mais frágeis.
Isso pode ser notado no arranjo das imagens que posicionam, de modo geral, os homens no alto, com destaque governadores ou outra figura importante, e em baixo, sentada, a mulher. A partir da análise semiótica, podemos compreender que, com esta disposição, o homem fica numa posição privilegiada, legitimada pelo poder do Estado, colocando a mulher num lugar de inferioridade, considerada como sujeito que precisa ser protegido por alguém.
O uso de mulheres pretas e de cargos mais baixos na área da saúde, como enfermeiras e auxiliares de enfermagem, busca gerar uma ideia de que aqueles governantes conhecem a realidade do Brasil, são socialmente engajados e, acima de tudo, são capazes de cuidar e prover para essas pessoas. Porém, o lugar central ocupado por essas mulheres pretas é palco para suas próprias campanhas e contradiz o lugar que elas ocupam na sociedade. A presença dos homens no quadro da fotografia parece supervisionar o ato da vacinação, numa posição superior. Sendo assim, o uso dessas mulheres como personagens centrais do início da imunização se dá no sentido de expor suas fragilidades, mais que ressaltar sua força.
Dados gerados na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD Contínua 2018) mostram que, em profissões culturalmente identificadas como femininas, a presença das mulheres supera a dos homens, com maior disparidade nas categorias de empregados domésticos, magistério, enfermarias e assistência social. Todas essas ocupações reforçam o estereótipo da mulher que deve se dedicar à ideia de zelo e cuidado com o outro.
As conclusões evidenciam que a visibilidade conferida à mulher nas campanhas de vacinação disputou espaço com representações de caráter sexista e racista. Nos eventos e em sua cobertura na mídia, as mulheres são colocadas como sujeito social frágil e dependente do Estado, no geral, representado por homens.
Pedro finaliza apontando que pesquisas como essa ajudam a revelar situações de apropriação e o contexto político-partidário que interfere na disseminação de notícias e é potencializado com a dinâmica das redes sociais. “Meus esforços de pesquisa estão concentrados em observar a disseminação de informações inverídicas em redes sociais virtuais em contexto pandêmico. Isso implica em um olhar atento às questões que envolvem as estratégias comunicacionais empreendidas por instituições representativas da ciência no enfrentamento dessa realidade.”