Destaque
Lúcia Maria da Silva: uma história do trabalho como pilar da educação integral
"Eu mereço: trabalhei o dia inteiro!". Os Institutos Federais surgiram num contexto de socialização do trabalho, inserindo a qualificação como princípio educativo: é preciso que os estudantes tenham habilidades técnicas, intelectuais e uma visão crítica da sua ocupação, capazes de dizer que é mais do que merecido: “É nosso direito!”
Desde a conquista operária da jornada de 8h diárias, simbolizada no dia 1º de maio, até aqui, o espaço para a qualificação profissional continua restrito a pouquíssimas pessoas - então, como tornar o próprio trabalho um pilar para a formação integral de um estudante? A resposta, claro, é complexa - mas a história da atual Coordenadora Cerimonial do Cine-Theatro Central, Lúcia Maria, formada em eventos no Campus JF, é um pontapé inspirador para compreendê-la.
Foi nos bailes da vida ou num bar em troca de pão
Que muita gente boa pôs o pé na profissão
De tocar um instrumento e de cantar
Não importando se quem pagou quis ouvir
Foi assim
Nas Baladas da Vida - Milton Nascimento
Fazendo jus à profissão, Lúcia Maria fez a entrevista parecer uma festa: a conversa com a cerimonialista teve direito a trilha sonora, nostalgia e gargalhadas - no final, é claro, só me restou dar os parabéns. Relacionando o seu ofício com uma canção do nosso patrimônio mineiro "Milton Nascimento", Lúcia dava uma pista de quão bonito eram os trilhos que o seu trem azul percorreu desde que, em 2016, ingressou no curso técnico em Eventos e descobriu a profissão que, segundo ela, foi o segundo melhor presente depois de seu filho. Foi assim:
Cantar era buscar o caminho que vai dar no Sol
Quem conhece Lúcia hoje, aos 66 anos, mulher de pele negra retinta, estilo elegantíssimo e jeito de quem está sempre confortável, logo pensa que, seja lá no que trabalhe, ela sabe se comunicar. É o tipo de pessoa que muito antes de articular qualquer palavra, já diz muito: em todas as vezes que nos encontramos, recebi um imenso bem-vindo - mas nunca verbalizado. “Eu quero estar onde o povo está! Não é assim que diz aquela música do Milton [Nascimento]?”, diz, tentando explicar todo o seu jeito de boa prosa.
"Eu queria ser médica!". É o primeiro sonho profissional de que se lembra, o qual a levou a cursar a faculdade de Enfermagem até o quarto período - momento em que, no Hospital Escola, sentiu que não era área em que queria seguir: “Não dava pra continuar sem separar a emoção da profissão. Como iria fazer isso? Tudo em mim gera emoção!”, brinca esboçando uma risada um tanto quanto emocionada.
Da decisão de largar a faculdade até a sua aposentadoria, em 1998, Lúcia não conseguiu separar o coração da profissão, mas também não teve espaço para juntá-los: na ocupação de secretária e depois de ser mãe, foram poucas as oportunidades de preencher o lugar-sonho deixado pela vontade de ser médica.
Todo artista tem de ir aonde o povo está
Foi dentro de um ônibus, em 2016, que Lúcia viu um anúncio sobre o processo seletivo do Campus JF. Daí para frente, a viagem que ela percorreu não caberia em nenhum itinerário urbano. Escolheu cursar o técnico em Eventos e na bagagem levava um sonho guardado há muitos anos: descobrir a sua vocação.
“Como eu não tinha encontrado isso antes?”, era o mantra que ela repetia durante os dois anos em que foi estudante do Campus e aproveitou todas as oportunidades para se especializar naquilo que, para ela, era onde poderia demonstrar toda a sua competência e vontade de fazer acontecer - desencadeada até em certa habilidade sambista: “Eu não sei ficar parada. Um dia ainda vou desfilar na Marquês de Sapucaí, e você vai comigo!”, brinca deixando claro que o convite é algo seríssimo.
Hoje, 5 anos após formada, Lúcia é Coordenadora Cerimonial no Cine-Theatro Central - um dos espaços culturais mais importantes da cidade. Segundo ela, todas as oportunidades que teve até aqui foram resultado da confiança de outras pessoas em seu trabalho e, principalmente, dela mesma em seus sonhos. “ [o curso de] Eventos foi o auge da minha vida, mudou aquela minha concepção de que certos lugares não posso ir por ser preta. Muito pelo contrário! Em dia de evento no Central eu já amanheço sorrindo.”, finaliza como uma péssima enfermeira - cuja emoção e profissão já se tornaram indissociáveis.
"A educação é um ato de amor, por isso, um ato de coragem [...]."
Citando Paulo Freire, o ex diretor-geral e atual chefe do Departamento de Educação do Campus JF, Sebastião Oliveira, enxerga diariamente que a educação integral vai além da formação técnico-científica. Existe, na convivência em sociedade, a formação pessoal dos estudantes. Segundo ele, de nada adianta a técnica pela técnica - o conjunto é o que dará autonomia ao estudante para fazer de seus conhecimentos, um caminho: “A história da Lúcia é um exemplo dessa formação e do diferencial de nossos alunos: eles fazem acontecer.”, comenta.
Já elegível para o pedido de aposentadoria, o ex-diretor ainda leciona a disciplina de História Geral para os alunos do ensino médio integrado. Questionado sobre a escolha de continuar no ofício, o professor responde com o mesmo entusiasmo em que Lúcia conta de sua trajetória: “Vejo os alunos cada vez mais questionadores, participativos - o brilho nos olhos deles é cada vez mais vivo, por isso, penso que ainda posso contribuir bastante”.
Humanização de Todos
Ainda no papel de uma narrativa inspiradora, a história da personagem boa prosa reflete outro argumento do educador citado pelo ex-diretor. Segundo Paulo Freire, o processo educativo é “o encontro amoroso entre todos os homens”, no qual, ao mesmo tempo, transformamos e somos transformados: “Assisti a minha mãe, aos 59 anos, voltar às salas de aula sem medo de encarar as dificuldades. Isso virou uma chave dentro de mim para correr atrás dos meus sonhos.", conta Bruno José, filho de Lúcia - que, inspirado por ela, formou-se como médico veterinário, profissão que sonhou desde criança.
A resposta para a pergunta que abre a reportagem, ao final, é mais simples do que parece: educação científico-tecnológica pública, gratuita e de qualidade. Esse é o caminho para que quando o assunto for a nossa profissão, a conversa remeta aos nossos sonhos, ao orgulho do que construímos e termine sempre assim: com um convite para desfilarmos na Marquês de Sapucaí.
Por Fábio de Cácia, estagiário em jornalismo sob supervisão de Laura Chediak