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Que o sonho da igualdade seja sonhado por todos e todos os dias!
“Sonho, sonho mesmo, seria o de uma sociedade justa e igual para todos, com igualdade de oportunidades e condições. Mas, jogando mais para baixo, o sonho seria ter uma sociedade em que possamos, ao menos, não ter um ponto de partida tão desigual para tudo”.
É provável que o sonho acima seja compartilhado por mais de 100 milhões de brasileiros, já que, segundo dados do IBGE (2022), a população negra no Brasil ultrapassa os 56%. É fato que a desigualdade de oportunidades não é exclusividade dos negros, porém, ela é quase uma sentença para esta parte da nossa população.
Não acredita? Então fique sabendo que a diferença salarial entre um branco e um negro, ambos com curso superior no Brasil, pode alcançar 31%, segundo o IBGE. E este é apenas um exemplo.
Sim, o racismo existe no Brasil. E ponto.
"Quem diz que o racismo não existe nunca sofreu ou não entende as consequências dele, o racismo fecha portas de oportunidades de trabalho, mexe com a autoestima, segrega e mata, dentre diversas outras consequências sociais e psicológicas para a população negra, não precisa ir muito longe para observar que o racismo tem raízes no Brasil e elas continuam nos estrangulando", Rodrigo Feliciano.
O relato desse sonho, que pode ser de muitos, foi dado por apenas um desses milhões de brasileiros. É o sonho de um brasileiro acostumado a ter que partir de pontos sempre mais distantes para chegar aonde quer: Rodrigo Feliciano Dias da Silva. O jovem, que tem só 22 anos, já aprendeu a sonhar um sonho coletivo, e, infelizmente, aprendeu também que às vezes é preciso sonhar mais baixo.
O que fez o Rodrigo sonhar mais baixo? A resposta é fácil, porém dura: racismo. Há quem diga que o racismo é coisa do passado no nosso país. No entanto, respaldado pelo seu lugar de fala, Rodrigo não permite questionamentos acerca do assunto:
“Não se trata de achar que existe, a discriminação racial existe e mata todos os dias. Se formos ao cerne da palavra, discriminar significa diferenciar, tratar diferente, separar. E a discriminação pode ser vista no mais simples exemplo, como a surpresa causada pelo fato de você estar numa festa, ou num congresso, como um participante, e não como um funcionário; até numa situação mais grave, como quando um policial aponta uma arma na sua cara sem nenhum motivo prévio aparente. É discriminação. E podem dizer que isso ocorre com todo tipo de pessoa, mas o que temos que observar aqui é a proporção, e proporcionalmente eu posso garantir que homens e mulheres negros são os principais alvos de tais atitudes, sendo os que mais sofrem e morrem por elas. Quem diz que o racismo não existe nunca sofreu ou não entende as consequências dele, o racismo fecha portas de oportunidades de trabalho, mexe com a autoestima, segrega e mata, dentre diversas outras consequências sociais e psicológicas para a população negra, não precisa ir muito longe para observar que o racismo tem raízes no Brasil e elas continuam nos estrangulando,” reflete o rapaz.
A escravidão é uma mancha na nossa história e, por mais que o tempo passe e a sociedade avance, nosso país ainda está longe de se livrar dessa mazela que, como bem apontou Rodrigo, fere almas e corpos todos os dias. O jovem entende bem a dor de viver situações como as descritas nos exemplos que ele citou, afinal, foi ele o alvo de olhares de estranhamento e também da arma policial. Portanto, é preciso pensar duas vezes antes de dizer que racismo no Brasil é mimimi.
Sirleia Maria Arantes, Doutora em História pela UFMG e professora da disciplina no Campus Barbacena do IF Sudeste MG, usa a história para confirmar a existência do racismo estrutural no Brasil:
“O racismo no Brasil continua presente no nosso cotidiano, pois somos herdeiros de um sistema escravocrata que durou mais de 300 anos. A abolição da escravidão não trouxe a cidadania para a população que habitava as senzalas. O nosso racismo é estrutural e ao longo do século XX foi escamoteado pelo ‘Mito da Democracia racial’, que pregava que os povos índios, negros e brancos viviam pacificamente. Sendo assim, dizer que racismo é ‘mimimi’ é uma estratégia para não aprofundar a discussão sobre as relações étnicos-raciais e desvelar que ainda nas ruas, nas salas de aula, no bar, no ônibus, no futebol, temos muitas atitudes, brincadeiras e palavras racistas herdeiras do passado escravista e senhorial”, aponta a professora.
Chamar alguém de macaco não tem graça.
Debochar do cabelo de alguém não tem graça.
Fazer piada sobre a cor da pele de alguém não tem graça.
Se você fala, está sendo racista. Se você ri, também está sendo racista.
E racismo não é mimimi.
Racismo é crime.
Estamos avançando ou retrocedendo?
Segundo Sirleia, do ponto de vista histórico, ainda é cedo para afirmar que estamos retrocedendo, pois, conforme explica ela, o historiador precisa se afastar do objeto analisado para que o avalie cientificamente. Já do ponto de vista social, para a professora, os últimos seis anos no Brasil foram de muita luta por parte dos povos originários, negros e pardos, para que seus direitos, garantidos na Constituição de 1988, não fossem solapados. Nesse período, a luta foi para que as leis que complementam a constituição, como a de Cotas e a da obrigatoriedade do Ensino de História da África, afrodescendentes e indígenas, continuem vigorando e fortalecendo as bases para que as conquistas das últimas décadas não sejam perdidas.
O que já podemos constatar é que os casos de racismo e injúria racial cresceram no Brasil nos últimos anos. Uma matéria publicada pela CNN em maio deste ano ilustra bem tal afirmação: Segundo dados da Secretaria de Justiça e Cidadania do estado de São Paulo, já foram registradas mais denúncias dos crimes de racismo e injúria racial entre janeiro e abril de 2022 do que em todo o ano de 2021. Já foram registrados 174 casos nas cidades paulistas neste ano, contra 155 durante todo o ano anterior. Durante os mesmos meses de 2021, os documentos indicam 20 casos – um aumento de 625% na comparação entre os dois anos. Os dados são de São Paulo, mas, infelizmente, é provável que se estendam a todo o país.
Sirleia acredita que tal aumento deve-se a conjuntura política de extrema direita que dominou o Brasil nos últimos anos: “A injúria racial e o racismo fazem parte da ideologia da extrema direita, e tal ideologia acaba permitindo que as pessoas se identifiquem e se sintam mais ‘livres’ para realizar atos racistas. Por entenderem que tais atitudes estão inseridas no modus operandi de governar e, portanto, não haverá punição”, explica ela.
Medidas afirmativas
"Então, as cotas são ações afirmativas que objetivam diminuir as desigualdades construídas historicamente pela escravidão no Brasil. Assim, é preciso considerar que o maior número das vagas nas universidades e institutos federais são uma conquista social, e, portanto, nada mais justo do que haver dentro dessas vagas, uma pequena parcela para negros e pardos”, defende Sirleia.
Se até a existência do racismo é questionada, o que dizer sobre a adoção de ações afirmativas, como o sistema de cotas? No ano em que a adoção do sistema de cotas no Brasil completa 10 anos, ainda há quem repudie tal medida.
Para entendermos melhor esta forma de pagar uma parcela mínima da nossa dívida histórica com a população negra, a professora nos convida a uma rápida viagem pela escravidão:
“Para entender o sistema de cotas, é preciso considerar que, entre 1525 e 1875, entraram no Brasil 5.848.266 (cinco milhões, oitocentos e quarenta e oito mil e duzentos e sessenta seis) de pessoas arrancadas de suas casas, de seus familiares, de seus reinos, clãs ou aldeias para se tornarem escravos em uma terra desconhecida. Negros eram considerados peças, um negócio lucrativo, amontoados, acorrentados três meses num navio negreiro. Na maioria das vezes, até se comunicar era difícil, uma vez que vinham de regiões diferentes do continente africano. Ao desembarcar nos portos do Brasil, eram batizados na fé católica e vendidos em leilões, separando os malungos (irmãos de travessia). Todas essas pessoas que chegaram no Brasil viveram sob o jugo da escravidão, e mesmo aqueles que se libertaram, não tiveram acesso à cidadania política e social. A Constituição Federal de 1824, por exemplo, permitia que os libertos que nasceram no Brasil votassem nas eleições de nível paroquial, mas não podiam ser candidatos. Com a Abolição da Escravidão, não houve uma preocupação com a cidadania dos novos libertos. E durante o século XX, as desigualdades sociais, econômicas e educacionais foram aumentando entre negros e pardos. Então, as cotas são ações afirmativas que objetivam diminuir as desigualdades construídas historicamente pela escravidão no Brasil. Assim, é preciso considerar que o maior número das vagas nas universidades e institutos federais são uma conquista social, e, portanto, nada mais justo do que haver dentro dessas vagas, uma pequena parcela para negros e pardos”, defende Sirleia.
Rodrigo também defende o sistema de cotas. Para ele, o sistema de cotas tem a grande importância social de dar oportunidades às pessoas que, provavelmente, não teriam acesso a determinados locais de ensino, não conseguiriam ocupar esses lugares e almejar posições mais altas na sociedade sem as cotas. Aos que são contrários às cotas, o jovem lança um questionamento:
“Uma pequena porção das vagas disponibilizadas são destinadas às cotas, a larga maioria das vagas ainda se encontra disponível para a ampla concorrência. E bem, se as cotas realmente privilegiam os negros, deveríamos ser maioria nos locais de ensino, não? E dizendo com base nos locais que frequentei desde mais novo, quando eu olhava para os lados e por cima dos ombros, os rostos que via majoritariamente não eram nem de longe, parecidos com o meu”.
Esse é o rosto do Rodrigo:
E foi através do sistema de cotas que Rodrigo, egresso do curso de Metalurgia do Campus Juiz de Fora do IF Sudeste MG, conseguiu uma vaga no curso de Farmácia da UFJF e pode, dentre outras tantas coisas, causar estranhamento ao ser visto participando de um congresso. E é através do sistema de cotas que, nos últimos dez anos, tem se tornado possível ver mais rostos como o do Rodrigo nos ambientes de produção de conhecimento.
De acordo com matéria publicada pelo Jornal Estado de Minas em março deste ano, os negros (pretos e pardos) representam 56% da população brasileira, e, devido às politicas de cotas, o número de alunos negros no ensino superior cresceu quase 400%, entre 2010 e 2019, chegando a 38,15% do total de matriculados, segundo dados do site Quero Bolsa.
Podemos considerar o sistema de cotas, portanto, como um avanço de alguns degraus na longa escada que leva ao sonho do Rodrigo: pontos de partida menos desiguais. Mas, há muitos degraus pela frente, já que, mesmo sendo maioria na sociedade e preenchendo mais as universidades, os negros ainda são minoria em cargos de liderança em empresas no Brasil, por exemplo.
Pensando que a construção de uma sociedade mais justa e igualitária passa necessariamente por uma educação mais abrangente e acessível, o sistema de cotas torna-se ainda mais legítimo e necessário.
“Acho a educação o melhor caminho para que todos comecemos a nos entender e consigamos evoluir como sociedade e como povo, a educação nos abre portas e nos leva a patamares cada vez mais altos de saúde, segurança pública e condições financeiras, assim como abre os olhos para o que realmente é necessário e importante para todos”, analisa Rodrigo.
O caminho para a construção de uma sociedade mais igualitária e justa passa pela educação. A educação é a chave para desconstruir o mito da democracia racial, desnudar o racismo e principalmente dar empoderamento à população afrodescendente.
Uma dinâmica feita pela professora Sirleia com alunos do IF Sudeste MG nos ajuda a refletir sobre os 10 anos da Lei de Cotas e faz cair por terra o mito do privilégio:
Os alunos formaram uma fila, no mesmo ponto de partida, como quem se prepara para uma corrida. E foram feitas 26 perguntas: 13 que levariam a um passo a frente (exemplo: se você estudou em escola particular a vida toda, dê um passo à frente) e 13 que levariam a um passo atrás (se você mora num bairro que necessita de constante intervenção policial, dê um passo atrás).
“As perguntas mais adversas e desiguais afetavam mais os alunos negros e pardos. Porém, quando inquiridos sobre o seu rendimento no IF, os alunos negros e pardos estavam em posição de igualdade com os que não foram afetados pelas perguntas adversas e estavam à frente, como vencedores. O aluno que ficou em primeiro lugar era branco. O que ficou em último, era negro. No entanto, ambos tinham a mesma nota na disciplina. A dinâmica do privilégio, nos indica, portanto, que o acesso e a permanência dos educandos numa educação pública de qualidade pode transformar vidas, criando uma sociedade mais justa e igualitária”, analisa a professora.
Consciência Negra
A data, instituída oficialmente pela Lei nº 12.519 de 2011, faz referência à morte de Zumbi, último líder do Quilombo dos Palmares, e pode ser como uma importante conquista do Movimento Negro no Brasil. E, segundo Sirleia, a data induz a sociedade a discutir sobre assuntos relacionados ao tema como: mito da democracia racial, relações étnico-raciais, racismo, cotas, e, principalmente, empoderamento negro.
A relevância do Dia da Consciência Negra também é apontada também pelo estudante Rodrigo: “A data é importante para lembrar para todos o que nós, negros, lembramos todos os 365 dias do ano: somos resistência e vamos continuar sendo. A data também tem a importância de enaltecer personalidades negras, as religiões de matriz africana, e tudo mais para termos uma maior aceitação e respeito na sociedade”, analisa Rodrigo.
Que o Dia da Consciência Negra seja uma oportunidade para enaltecemos toda a riqueza cultural que os povos de origem africana nos trouxeram, mas que a importância da igualdade seja lembrada não só em 20 de novembro, mas em todos os 365 dias do ano. Que o povo negro continue sendo resistência e que essa resistência seja cada vez menos necessária! Racismo não é mimimi, racismo é crime. Respeito não é mimimi, respeito é um direito de todos nós.
O IF Sudeste MG tem orgulho de participar do Sistema de Cotas e de de transformar vidas através de uma educação pública, gratuita, de qualidade e inclusiva. Confira alguns eventos promovidos no instituto para refletirmos sobre o Dia da Consciência Negra:
Ciclo de palestras online "Lei de Cotas na Educação (2012-2022): resultados em uma década e desafios presentes”, aconteceu no dia 16 de novembro e foi promovido pelo Campus Juiz de Fora. O vídeo está disponível no canal do projeto: https://www.youtube.com/watch?v=kay5JNc5oRI.
A palestra "A amplitude da cultura afro-brasileira e africana da Lei 10.639/2003" foi proferida no dia 10 de novembro e foi promovida pelo Campus Muriaé. Confira a palestra: https://www.youtube.com/watch?v=KguX-wKsTEk.
O Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (Neabi) do Campus Muriaé divulgou a programação dos eventos do mês da Consciência Negra. Os eventos acontecem até dia 29. Clique aqui para ver a programação.
Referências