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Agosto lilás: IF Sudeste MG reflete sobre violência doméstica

“Ele sempre foi muito nervoso, bateu no guarda-roupas da minha mãe durante o namoro quando eu tentei terminar”.

Foi assim que começou o sofrimento de R., uma balconista de 50 anos, com intrigantes brilho no olhar, sorriso no rosto e muita disposição para trabalhar. (Usaremos apenas a primeira incial para nos referirmos à vitima como forma deprotegê-la).

“A primeira agressão foi um tapa na cara. Nossa filha tinha um mês, ele chegou do trabalho, achou o feijão salgado, reclamou, eu respondi, e ele me agrediu. E assim eu vivi por cerca de 20 anos. Se eu fizesse algo que ele julgasse errado ou falasse com um tom mais alto, eu era agredida. Ele já jogou café quente no meu rosto, o prato de comida dele... Depois de me agredir, agia como se nada tivesse acontecido”, relata a vítima.

Tentando se libertar

Na tentativa de dar fim ao sofrimento, R.F.P. chegou a atentar contra a própria vida: “Os meus filhos eram a única alegria que eu tinha. Cheguei a atentar contra a minha vida depois das agressões, me feri com faca e me joguei na frente de um ônibus”. 

Libertação

“Eu só me libertei das agressões quando me separei definitivamente. Por isso, eu digo: mulheres, não tenham vergonha, não fiquem caladas, contem para outras pessoas o que enfrentam, peçam ajuda, denunciem, não fiquem sofrendo por tantos anos como eu fiquei”, suplica a vítima.

A sorte de um amor tranquilo

Depois de tanto sofrimento, R. descobriu o amor. Primeiro foi o amor próprio: “atualmente eu gosto de mim, chega de sofrimento, quero viver sorrindo e desfrutar do que Deus tem de melhor para mim!”, celebra ela.

Ela também descobriu o amor entre duas pessoas, um homem e uma mulher. R. teve uma segunda união que durou seis anos: “Ele era um ótimo companheiro. Ainda estou sofrendo pela perda dele”. Pois é, infelizmente o companheiro dela morreu há 5 meses, foi umas das quase 600 mil vítimas de Covid-19 no nosso país.

Você deve ter ficado muito triste com esta informação, não é mesmo? Confesso que eu fiquei. E, aí, disse: “Desculpa por te fazer lembrar de tudo isso!”. E ela respondeu: “Eu sempre quis contar a minha história para alguém. Eu sempre quis que mulheres soubessem o que eu passei e ser exemplo para que elas não passem por isso. Estou feliz de contar. Obrigada! Eu estou bem, quero ser feliz”, sentenciou com um sorriso nos lábios e um brilho nos bonitos olhos claros, que nem de longe demonstram tristeza.

R. teve dois filhos com seu agressor. E ele nunca agrediu as crianças. Toda violência era destinada a ela, que sofria em silêncio: “Nunca fui na polícia, nunca denunciei, não contava para ninguém o que eu passava. As agressões eram muito rápidas, eu tentava me defender para ele parar, mas ele nunca parou. Eu me separei várias vezes e depois voltava, nem sei como eu voltava, mas, voltava. Quando meu filho tinha um mês, eu levei outro tapa na cara, com o bebê no colo. Eu nunca denunciei e nem contei para minha família porque eu sentia vergonha e tinha medo de não conseguir sustentar meus filhos sozinha, apesar de sempre ter trabalhado fora”, confessa ela.

“Eu me separei várias vezes e depois voltava, nem sei como eu voltava, mas, voltava”

Pare um segundo e faça uma reflexão: Alguma vez, ao ouvir a história de uma mulher, que, assim como a R., ficou anos e anos casada com seu agressor, você se questionou sobre o porquê de ela não ter se livrado da situação antes?

Se a sua resposta for sim, você está refletindo o ideário machista implícito em nossa sociedade, que gera a culpabilização da mulher.  Somos frutos da sociedade e é compreensível que pensemos assim, por outro lado, é obrigatório e urgente que trabalhemos, mulheres e homens, pela desconstrução do ideário machista ao qual ainda estamos atrelados. Para acabarmos com a violência de gênero, que, além da violência física engloba as desigualdades salariais, os assédios assexuais, entre outros tantos tipos de violência, é preciso entender que a vítima nunca tem culpa. Não há saia curta que justifique uma cantada indesejada e nem feijão salgado que justifique uma agressão.

A psicóloga do IF Sudeste MG Ludmila Pinho nos ajuda a refletir sobre os mecanismo sociais que nos levam a culpabilizar as mulheres:

“Entendendo a violência contra a mulher relacionada a desigualdades de gênero numa sociedade patriarcal baseada em assimetrias dicotômicas homem x mulher, em que quem detém maior poder é sempre o homem, a violência do homem contra a mulher toma uma face crônica e estável. Essas estruturas sócio-históricas que fundamentam as relações assimétricas entre homens e mulheres se efetivam nos espaços sociais, nas famílias, no mercado de trabalho, nas subjetividades e nas relações. Esta estrutura de dominação que atua sobre mente e corpo, associada ao medo, ao vínculo afetivo existente, às dificuldades financeiras, à pressão social para a manutenção da instituição familiar, à vergonha, ao sentimento de culpa por uma suposta atuação falha na relação, dificultam o rompimento com a situação de violência, pois é preciso também romper com diversos papeis sociais. Mas, seguindo o pensamento da socióloga Helleieth Safiioti, pioneira no Brasil em estudos da violência de gênero, as mulheres não são cúmplices das agressões ao não denunciar, pois, para tanto, precisariam desfrutar de poder igual ao que detêm os homens. Sendo detentoras de parcelas menores de poder do que eles, apenas cedem à violência, mas não consentem.

A culpa feminina é social, histórica e culturalmente construída e está presente na vida das mulheres em diversos outros aspectos, não só na violência. Seu enfrentamento exige rompimento e desconstrução com esses fatores naturalizados, tanto pela mulher, quanto pelos homens e quando da elaboração de políticas públicas. Discutir a violência exige discutir os papeis sociais historicamente atribuídos à mulher”, reflete Ludmila.

A vergonha é do agressor

R.F.P afirmou que foram a vergonha e o medo que a impediram de gritar por socorro, de denunciar seu agressor e que a mantiveram em sofrimento por longos 20 anos. Ao longo do texto, você vai perceber que a palavra “vergonha” aparece várias vezes. A gente sabe que este sentimento deveria pertencer ao agressor, mas o que vemos, muitas vezes, é que a agredida, além das feridas do corpo e da alma, carrega o peso da vergonha:

“Em grande parte isso se associa ao estigma da violência sofrida, à desconfiança, à ideia de que de certa forma a mulher pode ter tido algum comportamento que incentivou ou encorajou a agressão, de que são responsáveis pela prática, ou seja, a culpabilização da vítima. O foco muitas vezes está no comportamento da vítima, que é questionada e desacreditada, e não no do agressor. Lembrando sempre que a culpa nunca é da vítima. Algumas mulheres internalizam uma culpa em denunciar, por entender estar contribuindo para o infortúnio do indivíduo que comete tal ato, que, no caso da violência doméstica e intrafamiliar, é alguém com quem tem vínculo não somente financeiro, mas também emocional. Há também o medo da exposição social, da vergonha de ter que reconhecer que seu relacionamento fracassou, da desconstrução de um projeto de vida, da avalição negativa das pessoas, e da possibilidade de denunciar e não dar em nada, da impunidade”, explica a psicóloga Ludmila Pinho.

E, além dos questionamentos da própria vítima, há ainda o temor de ser desacreditada pelas instituições:

“Também existe o medo da violência institucional, pois, infelizmente, a forma como as instituições algumas vezes conduzem as situações de violência e tratam a mulher pode levá-las à revitimização, ou seja, questionamentos inoportunos colocam dúvidas sobre a dor da mulher, sobre uma possível colaboração dela para que o fato ocorresse e  ser desacreditada por quem deveria ofertar segurança e apoio, incutando a culpa nela”, esclarece a psicóloga.

Diante da complexidade que envolve a violência contra mulheres, a necessidade de políticas públicas e de engajamento social fica clara. Vamos ver o que tem sido feito:

Pandemia agrava violência doméstica

Segundo dados de pesquisa do Instituto Datafolha, encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, uma em cada quatro mulheres sofreu algum tipo de agressão durante a pandemia, seja ela verbal, sexual ou física. Ao todo, são 17 milhões de mulheres agredidas entre junho de 2020 e maio de 2021, ou seja, 24,4% do total. A porcentagem representa estabilidade em relação à última pesquisa, de 2019, quando 27,4% afirmaram ter sofrido alguma agressão.

No entanto, alguns fatores preocupam: Na comparação com os dados da última pesquisa, há aumento do número de agressões dentro de casa, que passaram de 42% para 48,8%. Além disso, diminuíram as agressões na rua, que passaram de 29% para 19%. E cresceu a participação de companheiros, namorados e ex-parceiros nas agressões. Cabe destacar que o número de casos de feminicídio também apresentou aumento em diversos estados do Brasil e no mundo em 2020, quando comparado com o ano de 2019 e que o assédio sexual também cresceu.

Segundo Ludmila, tais números podem ser entendidos quando analisamos o novo cenário de convívio social trazido pela pandemia: “Como medida de segurança e prevenção ao contágio e disseminação do novo coronavírus, o isolamento fez com que as pessoas ficassem mais tempo em casa, obrigando mulheres a permanecerem em convivência com seus agressores por um período maior; propiciou o agravamento de conflitos domésticos e familiares já existentes e colocou mulheres que apresentavam histórico de vivências de violência doméstica em situação de maior risco".

Além disso, esse isolamento fez com que mulheres passassem a ter menos contato com sua rede socioafetiva – familiares, amigos, etc – e reduziu ainda mais o acesso aos serviços e ao apoio psicossocial, o que pode facilitar situações de violência e dificultar pedidos de ajuda”, elucida ela. Dessa forma, explica a psicóloga, as mulheres podem enfrentar obstáculos ainda maiores para se defenderem ou acionarem medidas de proteção. Conforme Ludmila, outro fator importante a ser considerado no aumento do risco de violência contra a mulher na pandemia é o socioeconômico. Algumas famílias tiveram seu sustento limitado, resultando no aumento do estresse e no agravamento da convivência conflituosa e até violenta:  

“O confinamento de pessoas em situação de estresse, dificuldades econômicas oriundas da perda de renda pela pandemia, dificuldades na obtenção de auxílios, e o maior tempo de convivência de vítima e agressor no mesmo espaço podem ter intensificado a violência doméstica”, avalia Ludmila.

Este fenômeno, assim como a Covid-19, também atinge todo o mundo. Organizações internacionais, como a ONU Mulheres, relatam a evolução da violência contra mulheres mundialmente desde o início da pandemia, baseando-se no aumento de pedidos de socorro em canais de atendimento.

Um panorama da legislação

Para a coordenadora e professora do curso de Direito do Campus Rio Pomba, Camila Bernardino Lamas, a Lei Maria da Penha trouxe muitos avanços na luta contra a violência doméstica: “A Lei Maria da Penha é considerada a terceira melhor lei do mundo no combate à violência contra a mulher pela Organização das Nações Unidas (ONU) e trouxe grande visibilidade para os direitos das mulheres”, avalia. Sancionada em 7 de agosto de 2006, a lei recebeu o nome da Maria da Penha, mulher cujo marido tentou matar duas vezes e que desde então se dedica à causa do combate à violência contra as mulheres.

O dispositivo cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; entre outros.

No caso brasileiro, segundo Camila, a lei é um marco do reconhecimento da violação dos direitos humanos das mulheres, pois, o Brasil foi declarado pela Comissão Interamericana de Direito Humanos como responsável pela violação dos direitos da Sra. Maria da Penha Maia Fernandes. Um dos efeitos dessa decisão, explica Camila, foi que o Brasil adotasse uma legislação que versasse sobre a proteção da violência de gênero e violência contra a mulher: “Destaca-se que a Lei trouxe uma importante inovação ao nosso ordenamento jurídico, prevendo e classificando os diferentes tipos de violência aos quais pode se submeter a mulher, demonstrando que a violência não se limita ao aspecto físico, podendo ser, entre outras formas, psicológica, patrimonial, sexual e moral. Outras previsões de grande relevância trazidas por esta lei foram as medidas protetivas, que são mecanismos que possibilitam que a violência possa cessar de forma quase imediata, como o afastamento do agressor do lar, a proibição de que se aproxime da ofendida, entre outras”, analisa Camila.

Avanços

Camila Bernardino traça um panorama dos avanços que a legislação contra a violência doméstica vem sofrendo no Brasil. Os mais recentes, segundo a professora, englobam a a lei nº 14.188/2021, que criou o programa de cooperação Sinal Vermelho contra a Violência Doméstica, modificou a modalidade da pena da lesão corporal simples cometida contra a mulher por razões da condição do sexo feminino, além de ter criado o crime de violência psicológica contra a mulher.

Além dela, a lei nº 14.192/2021 estabelece normas para prevenir, reprimir e combater a violência política contra a mulher, nos espaços e atividades relacionados ao exercício de seus direitos políticos e de suas funções públicas e assegura a participação de mulheres em debates eleitorais.

Destaca-se, ademais, a lei nº 14.132/2021, que prevê o crime de perseguição. De 2018, temos a lei nº 13.718, que criou os crimes de importunação sexual e de divulgação de cena de estupro. A lei nº 13.104/2015, intitulada lei do feminicídio, previu o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio, incluindo este crime no rol de crimes hediondos. A lei nº 12.845/2013, que estabelece que os hospitais devem oferecer às vítimas de violência sexual atendimento emergencial, integral e multidisciplinar. Por fim, a lei nº 12.650/2012, que altera o prazo prescricional para os crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes para que este comece a correr a partir da data em que a vítima completar 18 (dezoito) anos.

Como proceder

Camila explica que, com base na Lei Maria da Penha, as mulheres que sofrerem violência doméstica poderão se dirigir a uma delegacia, fazer um boletim de ocorrência e solicitar uma medida protetiva, que será autorizada pelo juiz. A medida protetiva de afastamento poderá ser excepcionalmente deferida pelo delegado de polícia, quando o Município não for sede de comarca, ou pelo próprio policial, quando o Município não for sede de comarca e não houver delegado disponível no momento da denúncia.

As penas vão variar de acordo com o tipo de crime praticado, seja ele o de feminicídio, lesão corporal, violência psicológica, importunação sexual, etc., explica a professora. Em relação à Lei Maria da Penha, há a previsão de medidas protetivas de urgência que obrigam o agressor, tais como suspensão da posse ou restrição do porte de armas, afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida, proibição de determinadas condutas, entre outras. Neste cenário, caso haja o descumprimento de Medidas Protetivas de Urgência, estará caracterizado o crime de descumprimento de medida protetiva cuja pena é de detenção, de 3 (três) meses a 2 (dois) anos.

Acolhimento

A lei nº 11.340/2006 possui dispositivos que tratam do atendimento da mulher em situação de violência doméstica pela autoridade policial, prevendo, entre outras medidas, que é direito dela o atendimento policial e pericial especializado e prestado por servidores, preferencialmente do sexo feminino, previamente capacitados. Além disso, explica Camila, quando da inquirição da mulher em situação de violência doméstica e familiar ou de testemunha de violência doméstica, nas situações em que se tratar de crime contra a mulher, deverá ser resguardada sua integridade física, psíquica e emocional, garantindo-se que não tenham contato direto com os investigados ou suspeitos e pessoas a eles relacionadas. A autoridade policial deverá ainda garantir a proteção da vítima, comunicando de imediato a ocorrência ao Ministério Público e ao Poder Judiciário, encaminhá-la ao hospital ou posto de saúde e ao IML, fornecer transporte para ela e seus dependentes para local seguro, quando houver risco de vida, e acompanhá-la para assegurar a retirada de seus pertences do local da ocorrência ou do domicílio familiar.

A legislação e a ação da polícia estão alinhadas quanto à forma de acolher a vítima. É o que relata a soldado da Polícia Militar do Estado de Minas Gerais, que serve no município de Leopoldina, Josilaine de Oliveira: “As vítimas na sua maioria são encontradas envergonhadas e fragilizadas. O atendimento sempre é de forma humanizada e de acordo com os procedimentos operacionais. O protocolo de primeira resposta tem como objetivo estabelecer padrões mínimos para atendimento da ocorrência. Os procedimentos são adotados obedecendo a norma vigentes, inclusive as providências previstas na Diretriz Integrada de Ações e Operacionais do sistema Integrado de Defesa Social de Minas Gerais (DIAO/SIDS).  Quando em contato com a vítima, a tratamos com cortesia, utilizamos linguagem adequada e clara e procuramos estabelecer uma relação de confiança com a vítima”, explica a policial. 

Avançamos, mas o desafio ainda é grande!

Traçado um panorama recente da legislação brasileira quanto à violência contra mulheres, Camila acredita que estamos avançando, mas ressalta a complexidade do assunto e destaca que muita coisa além da legislação precisa ser considerada:

“Percebemos um avanço em relação à legislação brasileira, tendo em vista o aumento da pauta de projetos de leis voltados para os direitos das mulheres. Além disso, quando analisamos a legislação pátria, identificamos também conquistas alcançadas pelas mulheres, conferindo a estas autonomias antes vedadas. Todavia, quando falamos em violência contra as mulheres, muitos e diversos são os fatores envolvidos, para muito além da legislação. Assim, apenas a normatização não é capaz de frear, sozinha, o avanço desse tipo de violência. Inicialmente, precisamos destacar a necessidade de implementação de políticas públicas com vistas a viabilizar e acompanhar as previsões legislativas, além de investimento do governo nas instituições que combatem estes crimes. O Brasil é um país que possui uma cultura patriarcal e machista mantida durante séculos da nossa história, inclusive pela legislação, o que conferiu a ideia de superioridade e autoridade do homem sobre a mulher. Assim, desta concepção resultou a violência e vulnerabilidade da mulher em relação ao homem. Portanto, são necessárias ações que visem à desconstrução desta cultura e, para tanto, destacamos a importância do ambiente escolar como um local de formação de senso crítico, conscientização e diálogo. Pelo exposto, para a redução dos alarmantes índices de violência contra as mulheres, em que pese a grande relevância do avanço da legislação protetiva, para além dela, consideramos que é imprescindível a implementação de políticas sérias de combate a este tipo de violência”, declara Camila.

O que a professora apontou na teoria, é corroborado por aquilo que a soldado relata ver na prática: “O combate à violência doméstica é desafiador uma vez que atinge mulheres de todas as idades, classes sociais, raças, etnias e orientação sexuais. Em todos os casos, a violência está vinculada ao poder e desigualdade das relações de gêneros. Através dos fundamentos e treinamento profissional de segurança pública se compreende o ciclo de violência doméstica e entendemos que a mulher não é vítima porque quer, ela é vítima devido a circunstâncias multideterminadas”, avalia Josilaine.

Como bem apontaram Camila e Josilaine, acabar com a violência contra as mulheres é um projeto amplo e que passa por muitos outros caminhos além da legislação. Passa necessariamente pela desconstrução do machismo, do patriarcalismo e pela disponibilização de oportunidades, através de políticas públicas. Vamos ver algumas ações que têm sido feitas pelo Poder Público, inclusive pelo IF Sudeste MG: 

Agosto lilás

A Secretaria da Mulher da Câmara dos Deputados e a Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher lançaram a campanha Agosto Lilás, com o objetivo de discutir temas relacionados ao enfrentamento da violência contra as mulheres em suas diversas formas.

Este ano a campanha tem algumas peculiaridades. Além de a Lei Maria da Penha estar completando 15 anos de vigência, a pandemia agravou a violência doméstica no Brasil. Ou seja, ter um mês dedicado à reflexão e discussão de soluções para a mazela da violência contra mulheres em meio ao aumento de agressões dentro de casa na contexto da pandemia, é ainda mais importante. É óbvio que o Agosto Lilás é apenas uma campanha, uma importante campanha, e que o tema precisa ser dicutido o tempo todo. Você deve ter levado cerca de um minuto para ler este parágrafo. Neste mesmo um minuto, estima-se que oito mulheres tenham sido agredidas no Brasil em 2020. 

A campanha do X vermelho

A partir da lei nº 14.188/2021, a campanha lançada no ano de 2020 por meio de uma parceria entre o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), em razão do aumento dos índices de feminicídio durante a pandemia, torna-se um programa a ser implementado em todo o país, constituindo-se em mais uma ferramenta de denúncia de violência doméstica, discreta e silenciosa. E, para Camila, o X vermelho é, sem dúvidas, um avanço.

A lei prevê que o Poder Executivo, o Poder Judiciário, o Ministério Público, a Defensoria Pública, os órgãos de segurança pública e as entidades privadas poderão estabelecer parcerias para a promoção do programa sinal vermelho, que se constitui como uma medida de ajuda à mulher vítima de violência doméstica e familiar.

Assim, a letra X marcada na mão de uma mulher será um sinal para denunciar a violência sofrida. Tal forma de denúncia poderá ser feita pela vítima pessoalmente em repartições públicas e entidades privadas de todo o País e, para tanto, segundo referida lei, deverão ser realizadas campanhas informativas e capacitações permanentes dos profissionais pertencentes ao programa.

A soldado Josilaine explica que a campanha “Sinal Vermelho para a Violência Doméstica” tem como foco oferecer às vítimas de violência doméstica um canal silencioso de denúncia, já que, muitas das vezes em seu domicílio a mulher não consegue pedir ajuda. Com o nome e o endereço das vítimas, os atendentes das farmácias e drogarias que aderirem à campanha deverão ligar imediatamente para o 190 e reportar a situação. No município em que atua, a policial relata que a divulgação da campanha e a sensibilização quanto a sua importância está promovendo a adesão das farmácias e levando o mecanismo ao conhecimento público.

Programa Mulheres Mil

O IF Sudeste MG está na luta pelo fim violência contra mulheres, seja ela física, sexual, salarial, psicológica,ou de qualquer natureza. Como órgão público e democrático, lutamos pela igualdade. Dentre as iniciativas pela igualdade de gênero promovidas no instituto, destacamos o Programa Mulhere Mil (PMM). 

O Programa Mulheres Mil (PMM) nasceu com o objetivo de minimizar a exclusão social feminina, visando àquela época, promover a inclusão social e econômica de mulheres desfavorecidas, em 12 estados do Norte e Nordeste do Brasil. Esse projeto-piloto tinha o intuito de potencializar a qualificação profissional, melhorar a qualidade de vida e o bem-estar dessas mulheres, de suas famílias e da comunidade onde estavam inseridas, bem como reduzir a violência contra a mulher.

 

Em 2011, o PMM foi instituído nacionalmente pelo Ministério da Educação (MEC), no contexto do Plano Brasil Sem Miséria, devido aos impactos positivos alcançados pelo projeto-piloto. Seu objetivo era oferecer as bases de uma política social de inclusão de gênero, tendo como diretrizes o acesso à educação, a redução da desigualdade social e econômica da mulher, a promoção da inclusão social, a defesa da igualdade de gênero, o empoderamento feminino e o combate à violência contra a mulher, de acordo com a metodologia de Acesso, Permanência e Êxito.

 

O Programa acontece em três etapas: A primeira é o módulo educacional central, que compreende atividades de acolhimento, entrosamento, conhecimento, autoestima e palestras com diversas temáticas, como por exemplo, direitos e deveres das mulheres, saúde, psicologia, elevação da autoestima, entre outros. Na segunda etapa, acontecem os cursos profissionalizantes, ofertados de acordo com o interesse das mulheres e as possibilidades do IF ofertante, e também as aulas de elevação de escolaridade, oferecidas de acordo com o nível escolar do grupo. Por fim vem a terceira etapa, que consiste no fechamento do programa com aulas sobre empreendedorismo, economia solidária, emprego formal e história da mulher e atividades especiais, como aula da saudade e formatura, que marcam o fechamento do programa.

 

As mulheres mil

A condição para a participação de uma mulher no PMM é a vulnerabilidade social. Para verificar essa condição, durante a inscrição é feito o preenchimento de um questionário sócio-econômico e, nesta oportunidade, algumas das candidatas já respondem positivamente sobre terem sofrido violência doméstica. Outras, entretanto, negam, e durante as atividades da primeira etapa, em especial na aplicação do mapa da vida, metodologia utilizada para conhecer melhor nossas alunas, acabam se abrindo e falando sobre o que já sofreram.

Em 2018 foi realizada uma pesquisa com 170 ex-alunas, ocasião em que % das entrevistadas respondeu ter sofrido violência doméstica, seja física, psicológica, moral ou sexual.

Vale ressaltar que algumas mulheres ainda se envergonham de serem vítimas ou têm medo de falar sobre o assunto e por isso, acredita-se que esse número seja ainda maior, razão pela qual, todas as atividades relacionadas ao tema são feitas com todas as participantes do programa.

 

Empoderar para libertar

Ao se pautar em princípios éticos e de elevação de autoestima, refletindo sobre a realidade econômica, política, social e cultural das cursistas, o programa contribui para o empoderamento dessas mulheres, este compreendido aqui por liberdade de decidir e controlar seu próprio destino com responsabilidade e respeito ao outro, ou seja, construção da autonomia e da consciência social dos direitos e deveres sociais.

Entende-se assim, que proporcionando à mulher a chance de construir sua autonomia, conhecer seus direitos e se tornar independente, o PMM é capaz de mudar sua vida, abrindo novos horizontes e possibilidades, auxiliando-a a deixar a condição de vítima e construir uma nova história.

São muitos relatos de superação, casos que acompanhamos de perto. Essa superação começa com vencer o medo. Tivemos alunas proibidas de frequentar as aulas, outra que o companheiro a seguia até a sala de aula para ver se ela realmente estava na escola, outra que o marido tinha ciúme de professor, entre tantos outros casos. Em quase todos os casos, elas foram firmes, enfrentaram o medo e concluíram o curso, colocando seus sonhos na frente do medo. Mas, há alguns casos em que a subordinação vence:

 

“Digo quase todos porque lembro claramente de um caso que o marido foi buscar a aluna no IF, dizendo que ela não podia sair de casa. Ela foi embora e não voltou mais. Fizemos inúmeros contatos, inclusive através do psicólogo e da assistente social, explicando seus direitos, mas ela dizia que não podia desobedecê-lo. Este exemplo demonstra claramente que muitas mulheres, mesmo tendo oportunidade, ainda se submetem a condições humilhantes”.

 

Alguns casos eram tratados de forma particular pela equipe multidisciplinar do programa. Posso citar o caso de uma aluna que vivia violência física e psicológica, mas dizia não poder deixar o companheiro porque não tinha para onde ir com a filha. Ela fez o curso de auxiliar de cozinha do Mulheres Mil e conseguiu um emprego em uma lanchonete. Com isso, saiu da dependência financeira do companheiro, terminou o relacionamento e seguiu sua vida, inclusive fazendo outros cursos no IF.

 

Vale destacar que a mulher se livrar da violência não quer dizer, necessariamente terminar um relacionamento. Tivemos uma aluna que ficou muito incomodada com uma palestra que falava da autoestima da mulher e que ela podia se vestir como quisesse, se arrumar, se sentir feminina, falar de suas vontades, que não precisava aceitar insultos, que não era objeto, etc. Ela veio conversar comigo e disse que nunca se arrumou, ouvia ofensas e xingamentos, era triste e obediente e que tudo isso era porque se espelhava no que viu sua mãe fazer durante toda sua vida. Então, ela contou que chegou em casa e conversou com o marido falando que queria mudar algumas coisas e ele aceitou. Ao final do programa ela relatou que parecia que estava vivendo uma lua-de-mel. O marido estava mais presente, carinhoso, dando valor a ela e a família bem mais feliz.

 

Eram muitos casos que ouvíamos, orientávamos e aconselhávamos, mas não eram documentados por se tratarem de fatos complexos e sigilosos, entretanto, na pesquisa realizada em 2018, algumas alunas falaram um pouco sobre o PMM ter contribuído para saírem da situação de violência. Por exemplo:

 

“Ajudou sim, foi muito satisfatório eu agora me sinto mais capaz mais preparada(M04).”

 

“Ajudou muito, tirou isso da minha cabeça. Abriu minha mente (M07).”

 

“Sinto, agora bem melhor. Antigamente, eu achava que era mais submissa aí eu preferia assim largar pra lá para evitar confusão, largar para lá para evitar briga. Agora não. Não largo muitas coisas para lá não (M03).”

 

“Sim. Muitas palestras, ajudou muito (M)4).”

 

“Meu medo era assim, tirou um pouco do meu medo, eu fiquei mais corajosa.

O que me encorajou mais foi ler bastante, coisas feministas, sabe. [...] Aí me

deu mais força. Acredito que aqui foi a palestra da Doutora K... me ajudou

muito (M11).”

Destaco abaixo o relato de uma de nossas alunas da turma de 2011, preservando, entretanto sua identidade. Essa aluna, apesar de já ter saído da condição de violência quando ingressou no PMM, encontrou nele a chance de recomeçar sua vida.

 

“Depois de três anos, tive o meu segundo filho e os ciúmes do meu marido também. Mais três anos e meu terceiro herdeiro veio ao mundo e a imaginação fértil de um homem ciumento e possessivo me atormentava cada vez mais. Mesmo com tudo isso acontecendo, dois anos depois, o nascimento da minha tão sonhada filha, quatro colunas segurando uma vida que estava perto de desabar. A, B, C e D, o quarteto que me deu força para sair de um relacionamento que estava se tornando violento. Há dois anos e nove meses, voltei para Barbacena, para fugir, sim, fugir de um ex-marido perseguidor. Estava arrasada, pois toda separação é dolorida, parecia não ter chão, mas olhava para quatro sorrisos meigos e inocentes, então, via o brilho da vida. Foi quando apareceu um projeto vindo de Brasília, chamado Mulheres Mil, então, com o apoio da equipe deste trabalho, agarrei com todas as forças, me tornando assim, esperançosa, a autoestima voltou, o sorriso também e a vontade de ver um futuro promissor pela frente. Vários anos sem entrar em uma sala de aula, voltei a fazer isso e estou tentando interagir com os livros e cadernos. Passado, ficou guardado no museu da minha mente.(...)Agradeço a Deus por ter colocado pessoas como essas do projeto em minha vida, porque essas me ajudaram a enxergar um sentimento diferente de viver. Me orgulho de fazer parte do projeto Mulheres Mil.”

 

Ajude-se

Cada pessoa é única e cada pessoa lida de forma diferente com as marcas que a vida vai deixando. R.F.P passou 20 vinte anos de escuridão, mas conseguiu, com o amor dos filhos, a fé, o amor de um outro homem e, acima de tudo, o amor próprio, recuperar a alegria de viver, o sorriso nos lábios e o brilho no olhar.

Mas, pode ser que você, mulher que também enfrentou a violência doméstica, não consiga sozinha achar um caminho para conviver com as marcas deixadas por tamanho sofrimento. Aí, o jeito é buscar ajuda, seja das pessoas próximas, seja de um profissional, ou as duas combinadas, é o que afirma a psicóloga do IF Sudeste MG Ludmila Pinho:

“É sempre importante buscar ajuda profissional especializada e o acolhimento da rede de apoio e afetiva da vítima. Os atendimentos psicossociais especializados para mulheres em situação de violência ofertam suporte na direção de sua emancipação e autonomia. E isso envolve não apenas aspectos individuais, mas traz uma dimensão política da intervenção psicossocial, como resistência permanente a normas excludentes e transformação de significados e sentidos atribuídos às formas de existência. Talvez por isso as marcas emocionais perduram mesmo findada a situação de violência.

 

Fontes:

https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2021/06/07/1-em-cada-4-mulheres-foi-vitima-de-algum-tipo-de-violencia-na-pandemia-no-brasil-diz-datafolha.ghtml

https://www.camara.leg.br/noticias/791047-camara-lanca-campanha-agosto-lilas-de-enfrentamento-a-violencia-contra-a-mulher/

https://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2021/06/acada-minuto-oito-mulheres-agredidas-brasil-pandemia-2020/

 

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